ÁREA DO ASSOCIADO

18/11/2016

Efeito Lava-Jato faz grupos cobrarem bom uso do dinheiro público



São Paulo — Em Paranaguá, cidade de 133 000 habitantes localizada no litoral paranaense, uma licitação chamou a atenção dos moradores em janeiro de 2015. A prefeitura pretendia gastar 10 milhões de reais, 2% do orçamento anual da cidade, na compra de 3,1 milhões de rolos de papel higiênico e outros itens para as repartições públicas. Se tudo isso fosse distribuído à população local, cada morador levaria 23 rolos de papel higiênico para casa.

“Era um verdadeiro absurdo”, diz o contador Everaldo Bonsenhor, morador de Paranaguá. O problema só foi identificado porque, três meses antes, 20 moradores da cidade, entre eles Bonsenhor, haviam criado uma unidade do Observatório Social, rede de organizações civis que unem voluntários para vasculhar documentos das prefeituras e das Câmaras Municipais à caça de casos de mau uso dos recursos públicos. No caso da licitação exagerada, o grupo entrou em contato com a prefeitura, expôs o absurdo e pediu a anulação da compra.

A reivindicação, porém, foi ignorada. O jeito foi os voluntários buscarem apoio do Ministério Público do Paraná, que exigiu o cancelamento do certame. Após quatro meses e a convocação de dois novos editais, a prefeitura finalmente voltou atrás, gastando 15% do valor original numa compra mais modesta: 365 000 rolos de papel. Mas o grupo do Observatório Social não parou por aí. Com seus alertas, a prefeitura já economizou 65 milhões de reais em 166 licitações.

Entre elas está uma que determinava a compra de 32 000 sacos de cimento, cinco vezes o consumo de uma cidade do porte de Paranaguá. O caso resultou numa investigação que apreendeu bens de 12 servidores públicos suspeitos de fraudes na licitação. Grupos de caçadores de desperdício de dinheiro público, como o de Paranaguá, estão se multiplicando Brasil afora. Criado há dez anos por cidadãos da também paranaense Maringá, o Observatório Social vem ganhando ares nacionais.

Até o fim do ano, 140 cidades de 19 estados deverão integrar a rede. Na capital paulista, por exemplo, um grupo foi criado há sete meses. “Temos interessados em fiscalizar outras 200 prefeituras”, diz Roni Enara Rodrigues, secretária executiva do Observatório Social. O avanço tem relação com a sensação comum a muitos brasileiros de que a corrupção é um problema crônico no país. Em 2015, o Brasil desceu sete posições num ranking internacional de corrupção, a maior queda entre 167 nações — agora ocupamos a 76a posição.

O tombo coincide com o período em que a Operação Lava-Jato ganhou proporção inédita, com prisões em série de empresários e políticos. A força-tarefa causou comoção nacional ao revelar desvios bilionários dos cofres da Petrobras que quase levaram a estatal à lona, e também começou a dar segurança para muita gente denunciar malfeitos. Para quem tem por ofício o combate à corrupção, os aliados são bem-vindos.

“A capilaridade dos observatórios permite que a fiscalização no emprego de recursos públicos se espalhe por toda a estrutura do governo, mesmo onde a fiscalização do Estado não chega”, afirma o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato. A situação caótica das contas públicas também é um incentivo à iniciativa. Enquanto o Congresso discute um teto para os gastos públicos federais, 77% das prefeituras devem encerrar 2016 com as contas no vermelho, de acordo com estimativa recente da Confederação Nacional dos Municípios.

A fiscalização atenta da sociedade reduz o risco de desperdício de dinheiro. Em dez anos, 2 bilhões de reais deixaram de ser gastos por causa de atuação do Observatório Social — 75% dessa economia se deu nos últimos três anos. São casos como o de Teresópolis, na região serrana fluminense, onde no início de 2016 os 12 vereadores devolveram 1,3 milhão de reais aos cofres públicos. O motivo? Boa parte dos recursos, originalmente destinados a gastos com viagens e alimentação dos vereadores, havia sido paga a empresas fantasmas.

Em Picos, no Piauí, os voluntários descobriram que um lote de remédios anestésicos utilizados em cirurgias de alta complexidade estava numa lista de compras da prefeitura. Detalhe: a prefeitura local não administra hospitais com centros cirúrgicos. A licitação original, de 12 milhões de reais, acabou saindo pela metade do preço com a retirada dos itens sem clara serventia.

Sem políticos

A fiscalização dos voluntários é feita com a leitura de diários oficiais e em pedidos de informação ao poder público. Os mais de 3 000 voluntários cadastrados atualmente na rede seguem um protocolo de monitoramento criado pela consultoria de gestão PwC. Quando surge um possível desvio, um ofício deve ser encaminhado ao órgão responsável. Se não houver resposta, o Ministério Público é chamado. Uma denúncia à imprensa é o último recurso.

Isso acontece quando a irregularidade é tão grave que a promotoria normalmente assume os holofotes. “Não queremos alimentar disputas políticas, mas ajudar o gestor público a fazer a coisa certa”, diz o fundador da rede de ONGs, o empresário paranaense Eduardo Araújo. Por esse motivo, filiados de partidos políticos não podem abrir uma unidade do Observatório, que geralmente reúne empresários, profissionais liberais e servidores públicos.

As despesas de cada unidade por mês giram em torno de 7 000 reais em aluguel, telefone e computadores e são financiadas por doações de entidades de classe e dos próprios voluntários. Periodicamente, há prestação de contas à sociedade e à direção da ONG, em Curitiba — uma necessidade para manter o grupo cadastrado. A ideia de cidadãos organizados para fiscalizar os gastos públicos não é novidade. Em 1932, no auge da depressão na economia americana, moradores de Nova York criaram a Citizens Budget Commission para cobrar o bom uso de recursos públicos.

Recentemente, o grupo percebeu que 8 bilhões de dólares estavam sendo direcionados para promover o desenvolvimento econômico da região, mas sem a transparência e o retorno esperados. Os estudos servem de alerta à população e dão noção de para onde está indo o dinheiro dos impostos. A realidade brasileira, no entanto, impõe desafios para uma fiscalização mais profunda. É comum o gestor público alegar perseguição política e contra-atacar, afastando colaboradores que indicam irregularidades.

Falta uma legislação para proteger o denunciante. Mas o vácuo está prestes a desaparecer. O projeto de lei da campanha 10 Medidas Contra a Corrupção, do Ministério Público Federal, que deve ser votado em dezembro numa comissão especial do Congresso, prevê benefícios como anonimato e pagamento de parte do valor desviado a quem denuncia um ato ilícito, a título de recompensa. A inspiração vem dos Estados Unidos, onde a Justiça premia o denunciante com até 30% da quantia surrupiada.

Além disso, a lei brasileira que obriga a transparência aos dados públicos, de 2012, é recente para padrões internacionais — no México, lei semelhante está em vigor há 15 anos e, na Suécia, há pelo menos um século. “Só agora os gestores públicos acordaram para o dever de organizar a informação de forma sistemática para fornecer ao cidadão”, diz o economista Bruno Brandão, representante da Transparência Internacional no Brasil. “Romper a cultura leva tempo.” Os primeiros passos já foram dados. 


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